sábado, 15 de outubro de 2011

A origem do projeto

Assisti à montagem de Mulheres Sonharam Cavalos em Buenos Aires, em 2002. O impacto da peça foi imenso não só pela beleza e violência do texto, mas também pelo contraste entre a densidade dramática da cena e os risos nervosos que provocava no público. Uma peça simples e potente. Em 2005 consegui comprar o livro onde o texto foi publicado e comecei o processo de tradução. Além da atualidade das questões do texto, que atravessam confrontos familiares para mergulhar em temas como violência, repressão, impunidade, manipulação da produção da memória, solidão, falta de perspectiva e falência econômica, entre outros, a peça fala sobre nosso recente processo histórico através de um texto que não é “datado”, e que reflete não só sobre os acontecimentos históricos, mas também sobre o legado que deixam para as gerações seguintes.


Ao falar desses temas, a montagem desta peça - que estende minha parceria com Ivan Sugahara para além do nosso trabalho na cia Os dezequilibrados - concretiza um sonho antigo de juntar ao meu trabalho de atriz, minha prática acadêmica. Em 2002 defendi minha dissertação de Mestrado em Sociologia com concentração em Antropologia no IFCS/UFRJ, e em seguida ganhei uma bolsa do Social Science Research Council (SSRC) para participar do projeto “Memória Coletiva e Repressão: perspectivas comparativas sobre os processos de redemocratização dos países do Cone Sul e Peru”. Éramos 16 bolsistas de países como Argentina, Chile, Paraguai, Peru, Uruguai, Estados Unidos e Brasil. O tema era a transmissão da memória da repressão para as gerações que não vivenciaram diretamente os regimes ditatoriais. Meu projeto falava da transmissão desta memória no teatro brasileiro contemporâneo, que praticamente não tratava do tema. Acabei fazendo um estudo comparativo com a Argentina, onde havia várias peças sobre o assunto. Explorei, então, a questão da ausência de transmissão desta memória pelo nosso teatro, o que em alguma medida comprovou a eficácia da lavagem cerebral que o regime militar brasileiro promoveu. Durante esta pesquisa fiquei 15 dias em Buenos Aires fazendo pesquisa de campo e foi nesta ocasião que assisti à montagem original da peça de Veronese.


Encantada com a quantidade e qualidade dos textos produzidos pelos autores argentinos, acabei me envolvendo como tradutora, produtora e atriz de três peças contemporâneas. Além de Mulheres Sonharam Cavalos, dois textos de Rafael Spregelburd: A Estupidez, que encenei este ano com a cia Os dezequilibrados; e A Modéstia, traduzida por mim, Isabel Cavalcanti e Pedro Brício, que vai dirigi-la e que está prevista para estrear em março de 2012. Essas montagens visam estreitar o diálogo intercultural com o teatro argentino. Se a circulação de textos de autores latino-americanos se dá de forma precária nos países de língua espanhola, a barreira do idioma agrava ainda mais o isolamento e a falta de intercâmbio da produção cultural do Brasil com os países vizinhos. Portanto, acredito ser preciso incentivar e estimular esta interlocução, viabilizando o diálogo e a reflexão do que nos diferencia e também das questões que temos em comum.


Letícia Isnard

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