sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

CRÍTICA DE SERGIO MOTA

Potente, visceral e incômoda é a encenação de Ivan Sugahara, com assistência de direção de Gabriel Salabert, para o texto do argentino Daniel Veronese, "Mulheres sonharam cavalos", em cartaz no Teatro Poeirinha. Infiltrada de metáforas em torno de um encontro familiar (3 irmãos e suas esposas), a peça flagra uma assustadora violência cotidiana, banal e ordinária, inserida no seio dos personagens e... fruto das relações apodrecidas das instituições, em especial a família. Se a violência é linguagem - forma de se comunicar algo -, o texto de Veronese, ao reportar os atos de violência, principalmente o fracasso do núcleo em foco, surge como ação amplificadora desta linguagem primeira, aqui, uma forma de estética da crueldade. Obviamente, pela forma engenhosa e extremamente contemporânea como Sugahara conduz a ação e a direção precisa dos atores (direção "faca só lâmina", diria o poeta João Cabral), não há como deslocar o tema de seu centro na problemática sociopolítica, constitutiva da cultura nacional, como elemento fundador.

Sem protagonistas, os atores se envolvem e entendem os confrontos como ruídos, um ruído da realidade direta, marcado pela violência e pela arrogância que se imprimem em todos os atos humanos, inclusive na arte, com um poder de contaminação que atinge até mesmo os espíritos mais sensíveis. A família vai se anulando e se contaminando, sem que se saiba de onde partiu o vírus e o que está por trás dos jogos praticados entre eles. O que é genial na encenação e, ao mesmo tempo tenso e assustador para o espectador, que está literalmente dentro da cena por conta de um magnífico e eficiente projeto cenógrafico - uma arena de leões -, é o fato de que não há progressão, curvas dramáticas e clímax. Todos os atores, viris ao extremo e vivos em cena, (Ana Barroso, Elisa Pinheiro, Isaac Bernat, José Karini, Leticia Isnard e Saulo Rodrigues, sob a direção de produção de Tárik Puggina), já entram no palco "in medias res", no centro das coisas, com alta potência no apodrecimento das relações ali conflagradas.

Como é bom ver um trabalho de pesquisa sério e uma coerência acadêmica, para quem acompanha o trabalho de Ivan e Letícia, como eu, admirador de primeira hora! Seus processos são capítulos sérios e dedicados que beiram a pesquisa de campo e tornam ímpar essa parceria. Além da direção de atores muito bem orquestrada, impressiona também a cuidadosa e oportuna preparação de Paula Maracajá, que reforça a tensão que vai se estabelecendo na ruidosa cena, a partir da incorporação de movimentos equinos altamente embrutecedores, como os rinocerontes do emblemático texto de E. Ionesco. Engraçado é que os personagens já gigantes na forma ficam ainda maiores a partir dessa incorporação, como se não coubessem no exíguo espaço cenográfico e fossem ultrapassar a fronteira que os separa de uma quarta parede além arena. Os movimentos, quase uma sombria coreografia, emulam e preparam a surpreendente cena final, razão de todo o espetáculo.

Sergio Mota


sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

VOLTAMOS HOJE!!!

Nesse fim de semana, Analu Prestes, ainda em recuperação, será substituída pela atriz Ana Barroso. O espetáculo em cartaz no Teatro Poeirinha, sextas e sábados às 21:30 e domingos às 20:00, até 18 de dezembro. Venham assistir!

sábado, 26 de novembro de 2011

CANCELAMENTO

Hoje, sábado dia 26 e amanhã, domingo dia 27 de novembro a peça está CANCELADA porque uma das atrizes se machucou.
Estaremos ensaiando a sbstituição para que no fim de semana que vem a situação se normalize.
Sentimos muito e pedimos desculpas a todos.

A Produção

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

MULHERES SONHARAM CAVALOS

Porque a violência pode está mais próxima do que se imagina

Peça de discurso sofisticado e brutal, personagens definidos, emoção e um final inesperado

Um jantar para celebrar a reunião de uma família, dentro de um apartamento de um edifício readaptado - um antigo galpão abandonado. O motivo do encontro é a revelação que precisa ser feita: o fim do negócio de família. Mas como reunir uma família alterada, que parece estar à beira da destruição, da violência e da sombra da morte? “Mulheres sonharam cavalos” é uma história com ares misteriosos e que deixa no ar uma pulsação de que algo iminente está por vir, e de que algum fato determinante para a trama já aconteceu antes mesmo dos personagens se mostrarem em cena.

Na história três mulheres são casadas com três irmãos. É possível observar que cada personagem da história (Bettina, Rainer, Ivan, Lucera, Ivan, Roger, Ulrika) tem interesses por trás de suas “máscaras”, que eles despertam sentimentos contraditórios e isso os torna humanos. A peça “Mulheres sonharam cavalos” mostra tipos humanos fortes, realistas, verossímeis, brutais e até animalizados. Com um discurso sofisticado e brutal, há um contraste visível entre todos os personagens, que estão muito bem caracterizados, muito definidos.

(...)

Com uma mistura de linguagens no trabalho de interpretação dos personagens, que ora se utilizam de uma linguagem realista ora não-realista, a peça traça possibilidades, cria jogos cênicos que, embalados por ritmos e sons, faz a montagem abrir espaço para se pensar as diferentes perspectivas para se construir e abordar o tempo teatral. Cabe a personagem Lucera romper o tempo realista dramático, por meio de uma suspensão no tempo. Como se ela estivesse num outro plano na história. Sozinha, ela pensa, reflete, questiona os outros personagens. E tudo fica suspenso, congelado, mas não imóvel, como se os outros personagens cavalgassem numa outra viagem temporal e Lucera pudesse segurar, de alguma forma, as rédeas daquela situação.

O uso dessas duas linguagens paralelas na peça abre espaço para que se descortine mais sobre a vida da personagem Lucera e de toda a trama. Com esse recurso, podemos percebê-la como alguém que é distinta daquele círculo familiar, seja no seu figurino, seja no que Lucera diz sobre a sua realidade interior. E é por meio desses momentos de solidão de Lucera que ela explana e compartilha seus pensamentos, fazendo assim com que o público também possa compartilhar e desvendar mais sobre a trama e sobre os outros cinco personagens que engendram a história.

(...)

Outro aspecto muito interessante a citar é a relação entre o público e os personagens. A platéia joga com os personagens, vibra, torce, sofre com eles. O público está incluído na relação que se desenrola diante de seus olhos. Há uma temperatura emocional ao longo da peça que incita desde o começo o público a questionar e a querer desvendar quem são os personagens: Ivan, Rainer, Roger, Bettina, Ulrika e Lucera. Gradativamente, o público vai desvendando e se identificando com aquelas pessoas, que dão vida e sentido para a trama.

(...)

Mais sobre o autor e a história

Com a direção de Ivan Sugahara e um time de seis atores, o espetáculo é interpretado com emoção, sentimentos, falas cheias de sentidos e excelente interpretação do elenco. O trabalho do atores está impecável: Isaac Bernat (Ivan), Analu Prestes (Bettina), Elisa Pinheiro (Lucera), José Karini (Rainer), Letícia Isnard (Ulrika) e Saulo Rodrigues (Roger).

“Mulheres sonharam cavalos” é uma peça escrita pelo dramaturgo argentino Daniel Veronese. O texto tem como pano de fundo o contexto histórico da ditadura militar da Argentina – na montagem essa questão não é objeto, visto que a peça pretende-se ser menos marcada temporal e geograficamente. “Mulheres sonharam cavalos” traz o universo dos cavalos como gancho para falar do militarismo da ditadura, através de três gerações de personagens. (...)

Essa história de violência ultrapassa territórios e épocas e Veronese soube abordar um momento ímpar da história - não só da Argentina, mas que ocorreu em diferentes partes do mundo - falando de violência, crise, crime, sentimentos e de um tempo que deixou marcas muito além do que os livros podem contar sobre uma geração. Por isso, trazer à tona esse texto com um trabalho tão bem acabado é uma oportunidade imperdível para os bons apreciadores da boa arte teatral.

por Danielle de Mattos

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

crítica - Lionel Fischer

Teatro/CRÍTICA

"Mulheres sonharam cavalos"

...............................................................
Contundente metáfora de um país


Lionel Fischer


"Seis personagens atuam em um pequeno ambiente - a sala de um apartamento - deixando entrever um recorte de suas vidas, onde surgem mais fios soltos do que explicações e respostas. As peças deste tabuleiro, no qual todos se converterão em perdedores, são três mulheres casadas com três irmãos. O que desencadeia o conflito é o encerramento de um negócio familiar, a cargo de um dos irmãos. Com a intenção de transmitir esse fato ao resto da família, um almoço foi marcado. Como resultado, revelações devastadoras acabam desestruturando completamente a família, chegando-se a um inesperado final".

Extraído do ótimo release que me foi enviado pela assessora de imprensa Daniella Cavalcanti, o trecho acima sintetiza o enredo de "Mulheres sonharam cavalos", do argentino Daniel Veronese, em cartaz no Teatro Poeirinha. Ivan Sugahara assina a direção, estando o elenco formado por Analu Prestes, Elisa Pinheiro, Letícia Isnard, Isaac Bernat, José Karini e Saulo Rodrigues.

Como explicitado no parágrafo inicial, estamos diante de uma família em inexorável processo de desagregação. Mas também podemos encarar o texto como uma metáfora de um país - no caso, a Argentina - esfacelado pela brutal ditadura militar. A expressiva cenografia de Flávio Graff (no programa este profissional é nomeado diretor de arte, mas suponho ser de sua autoria o cenário) nos mostra um ambiente decadente e claustrofóbico, um pequeno apartamento de um prédio desabitado, o que pode sugerir a grande quantidade de argentinos que deixaram o país em busca de um recomeço para suas vidas. E há também a clara alusão à famigerada prática dos militares de adotar os filhos recém nascidos de terroristas mortos, que passavam a criar como se fossem seus prórpios filhos.

Mas seja qual for a leitura que cada espectador decida fazer, o que realmente importa ressaltar é qualidade do texto, sua original estrutura narrativa, a contundência dos diálogos e a capacidade de Daniel Veronese de criar personagens magnificamente estruturados, ainda que sem entrar em maiores detalhes a respeito da psicologia de cada um. Ou seja: é como se o autor apresentasse ao público uns poucos fragmentos, deixando à sua fantasia a tarefa de preencher propositais lacunas. 

Com relação ao espetáculo, Ivan Sugahara exibe aqui um de seus melhores trabalhos de direção. Impondo à cena uma dinâmica em total sintonia com os principais conteúdos propostos pelo autor e valendo-se de marcas cuja expressividade transcende o realismo, o encenador também possui o mérito suplementar de haver extraído excelentes atuações de todo o elenco.

Sob todos os aspectos, os profissionais que estão em cena ratificam nossa crença de que este país pode carecer de tudo, menos de grandes intérpretes. Todos demonstram notável capacidade de entrega, inteligência cênica e uma mais do que evidente comprensão do contexto em que seus personagens estão inseridos. Assim, só nos resta parabenizar, com total entusiasmo, Analu Prestes, Elisa Pinheiro, Letícia Isnard, Isaac Bernat, José Karini e Saulo Rodrigues.

No complemento da ficha técnica, considero irrepreensíveis as colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Letícia Isnard (tradução), Paula Maracajá (preparação corporal), Rose Gonçalves (preparação vocal), Paulo César Medeiros (iluminação) e Ivan Sugahara (trilha sonora).

MULHERES SONHARAM CAVALOS - Texto de Daniel Veronese. Direção de Ivan Sugahara. Com Analu Prestes, Elisa Pinheiro, Letícia Isnard, Isaac Bernat, José Karini e Saulo Rodrigues. Teatro Poeirinha. Sexta e sábado, 21h30. Domingo, 20h.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Véspera

Amanhã, às 21:30hs, nascem Ulrika, Rainer, Roger, Bettina, Ivan e Lucera.
Será um parto lindo, não tenho dúvidas: com pais tão dedicados e talentosos não teria outra possibilidade.
É com o coração cheio de amor que agradeço a todos que embarcaram no meu sonho de gestação e que estão compartilhando comigo a enorme alegria de ver esses filhos nascerem.

Sobre os companheiros de tantas alegrias, de todos os dias, nos últimos dois meses:

Ivan, grande parceiro que não titubeou em guiar este leme com tanto talento, dedicação e carinho. Que orgulho te ver tão ousado nos caminhos propostos. Quanta admiração pela sua destreza em nos conduzir.

Saulo e Karini, meus amigos-de-fé, meus irmãos-camaradas, como sempre é um enorme prazer contracenar com vocês. Mais uma peça... Me dá uma tranquilidade ímpar ter vocês aqui. Alegria certa na labuta diária. Talento e bom humor: isso não tem preço. Uma delícia ter a família em cena.

Analu, que alegria ver você dando vida à Bettina. Não escondo de ninguém que ela é a minha preferida, mas ainda não posso dar conta dela e é com muita satisfação e admiração que a vejo ganhar vida através do seu talento. Uma honra ter uma atriz como você nesse processo.

Elisa, nova companheira de cena, corajosa, forte e delicada como Lucera, a mais misteriosa das nossas criaturas veronesianas. Não poderia ser outra. Perfeita!

Isaac, novo parceiro na arte e na vida, a cada dia fico mais feliz de ver, de conhecer, de aprofundar o meu olhar sobre o homem e o artista que você é. Um privilégio.

Gabriel, o mais dedicado assistente com olhos de lince que não deixam passar absolutamente nada!! A segurança que você nos dá, a todos, é imprescindível. Te quero pra sempre por perto!

E sobre os companheiros de processo, que não estavam lá necessariamente todos os dias, mas que certamente trabalharam todos os dias para que pudéssemos chegar aqui: 

Tarik, nosso super produtor / mágico / parceiro;
e sua maravilhosa equipe de prestativos e bem-humorados paus-pra -toda-obra: Aline, Igor, Juliana;
Paula, nossa diretora de movimento-coreográfico-animalesco, (eu não sabia da égua que havia em mim...);
Rose, que com sua escuta gigante deu nova voz às nossas vozes;
Paulinho, luz das nossas vidas, que fez este cenário ser tudo o que ele é na sua total plenitude;
Flávio, gênio total, que não economizou em criatividade e bom gosto ao nos transformar em imagens tão potentes com seus figurinos lindíssimos e que criou com sarrafos, novelos de lã e papel manteiga o cenário mais bonito da minha vida;
Júnior, seu incrível, talentoso, gentil e simpático assistente;
Luciano, programador visual e primeiro a parir uma referência de imagem lindíssima que deu identidade ao nosso trabalho;
Dani, nossa super-poderosa-gata assessora de imprensa que lança nossas novidades nas melhores correntes de ventos que chegam nos 4 cantos do mundo;
Dalton, nosso fotógrafo mais paciente do mundo que não treme a câmera de rir com as barbaridades que falamos pra tentar descontrair a perecer naturais nas fotos;

E os nossos futuros companheiros de todos os dias:
Luciano operando o som, Wallace na luz, Walter nosso camareiro-contra-regra-anjo-da-guarda e Aninha na administração,
e toda a MARAVILHOSA equipe do Teatro Poeira:

                                                        MUITO OBRIGADA!!!!!!!!!!

Cada vez mais fica mais claro pra mim que teatro se faz com algum dinheiro e MUITO trabalho e amor.
Amo vocês.

                                                           MERDA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

LETÍCIA ISNARD

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Construção

Três adjetivos para Ulrika:

ANSIOSA
INFELIZ
CRIATIVA

Crio uma partitura física, uma sequência de ações relacionada a cada uma dessas palavras.

ANSIOSA:
1- 2 voltas na cadeira, andando, batendo os dedos das mãos uns nos outros.
2 - paro atrás da cadeira, segurando em seu encosto com um breque violento de um dos pés no meta-tarso, quase um chute no chão.
3 - viro de lado pra cadeira, umas das mãos apoiada no encosto, dedilhando a madeira, uma patada com o meta-tarso de um do pés no chão.
4 - repito a pose 2, olhando pra um dos lados.
5 - largo a cadeira e ando um passo como se fosse na direção para onde estou olhando.
6 - desisto, completo a vota na cadeira e sento, cruzando as pernas de enfiada na diagonal.

Depois experimentamos encaixar essa sequência de ações em algum trecho de texto:

RAINER: - Então, o que você viu?
ULRIKA fazendo a ação 1 (2 voltas na cadeira, andando, batendo os dedos das mãos uns nos outros- Não vi nada, pergunte ao seu irmão.
RAINER - Perguntei a você porque sei que alguma coisa você viu. Vi que você olhava para eles e ria. Você não conhecia eles Lucera?
LUCERA - Do que você está falando? Teve uma hora que eu deixei eles e desci sozinha.
ULRIKA fazendo a ação 2 (paro atrás da cadeira, segurando em seu encosto com um breque violento de um dos pés no meta-tarso, quase um chute no chão), olhando pro Rainer - Lucera já tinha ido pegar o elevador. E eu não ria. Como eu vou rir disso.
RAINER - Era um casal. Uma mãe e um pai. Você conhecia eles?
ULRIKA fazendo a ação 3 (viro de lado pra cadeira, umas das mãos apoiada no encosto, dedilhando a madeira, uma patada com o meta-tarso de um do pés no chão) - Não. E não sabemos se eram pais de alguém. Não quero me estressar por causa dos outros.
RAINER - E por que tanta agitação então?
ULRIKA fazendo a ação 4 (repito a pose 2, olhando pra um dos lados) - Eu gostaria que você me deixasse um pouco mais tranqula, Rainer. (ação 5: largo a cadeira e ando um passo como se fosse na direção para onde estou olhando, agora, o RainerQuero ser uma dona de casa normal.  (ação 6: desisto, completo a vota na cadeira e sento, cruzando as pernas de enfiada na diagonal) E sei que não vou ser nunca se continuar do seu lado. É isso.

 Outro exemplo: criamos três poses onde as mulheres se encaixavam. A referência eram imagens de leoas no zoológico. Deitadas, recostadas umas nas outras, observando algo. O que resultou nessas imagens:


Ao longo do processo criamos inúmeras partituras de ações - algumas sozinhos, outras em duplas ou trios -, aleatoriamente. Criávamos a partir de estímulos como exercícios, imagens ou palavras.
Depois experimentamos fazer as partituras em blocos de diálogos, e era incrível como o encaixe era perfeito, parecia que as ações tinham sido criadas para cada trecho especificamente. Depois, muita repetição para que ficasse orgânico, para que parecesse natural, sem perder a qualidade de estranheza. E, aos poucos, intuitivamente, quase que naturalmente, os bichos foram surgindo.

Quase um balé.

Letícia Isnard (Ulrika)

FRAGMENTO DE "MULHERES SONHARAM CAVALOS"

Também é fato que qualquer uma dessas pessoas consideraria agressivo e me romperia o crânio com muito gosto se eu arranhasse o seu carro ou apenas se eu olhasse um pouco efusivamente para a sua esposa. Quer dizer que o seu carro ou a sua senhora seriam mais importantes do que a minha desgraça. Um olhar se responde com um insulto, um insulto com uma bala, e parece que está tudo bem. Que está tudo muito bem. Mas isso é o que é verdadeiramente agressivo desta vida. Penso isso a cada manhã. Devemos sair devolvendo a agressão? Devemos sair batendo nas pessoas para descarregar as frustrações pessoais? Matar sem motivo?
Ainda acho que não. Sou uma pessoa antiga? Pode ser. Mas prefiro ser. Acho que esse é o tema. Melhor calar a boca. Melhor calar a boca. Eu digo isso a mim mesmo e não me escuto. É o meu maior defeito. Mas a verdade é que todo mundo se violenta por qualquer coisa. Entretanto se perguntarmos a cada um dos habitantes deste país todos dizem querer a paz. Dá pra entender? Eu não entendo. De verdade, não entendo. Se alguém puder me explicar, porque alguma coisa isso tudo quer dizer, mas eu não consigo entender.

RAINER (DANIEL VERONESE)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

FRAGMENTO DE "MULHERES SONHARAM CAVALOS"

Sim. É uma situação muito delicada pra mim e suponho que não apenas pra mim. (PAUSA. GESTO). E não sei mais o que dizer. Por isso estou mexendo as mãos. Certamente pareço um idiota. Se quiserem posso dizer que sou um fracassado e logicamente também poderia acrescentar que quero me matar. Como quando nosso pai reunia nós três para ensinar aritmética e eu sentia que era só a gente pôr os números no lugar certo que o mundo se resolveria. Me senti assim quase a vida toda. Até hoje. Digo se A for para B como B é para...para... todos vão...me compreender, mas se eu digo que sou um fracassado e que, por exemplo, realmente tenho a necessidade de me atirar de cabeça deste prédio, mas me atirar de verdade, não vai faltar quem me diga: não faça isso, o dinheiro vai e vem, sempre há esperanças, viva a sua vida, aproveite antes que fique velho, porque eu não me considero velho. Porque eu não me considero velho. Mas também é fato que, e tenho que dizer isso porque é o que eu penso, e não me olhe assim, Ulrika...

RAINER (DANIEL VERONESE)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Quase um recomeço

Ontem, quando entramos na sala de ensaio, nos deparamos com um novo espaço. Aquele onde ensaiamos nos últimos dois meses já não existia. As tábuas corridas de madeira, as paredes pretas e os praticáveis de diferentes níveis continuavam lá, mas estavam revestidos da obra de arte que é o cenário de Flavio Graff. Além disso, Paulo Cesar Medeiros preparou sua potente luz para nos receber, conferindo ao espaço o clima que a peça tem – que buscamos nas relações entre os personagens – mas que, plasticamente, ainda não sabíamos exatamente como seria. Eu, pelo menos, descobri que não fazia a mais vaga idéia, pois fui absolutamente surpreendida pela beleza e força daquelas peças e daqueles refletores, que usam recursos simples para criar ambientes que variam da extrema potência até a enorme delicadeza, passando, é claro, pela mais crua violência.


É muito animador perceber como esses novos elementos podem trazer ainda mais vida a um processo que já é por si só estimulante. Artistas que se juntam, idéias que se completam, materiais que dão nova luz a questões emperradas, ou então tidas como solucionadas. Esse momento nos dá cada vez mais a certeza de que arte é movimento, que as possibilidades são infinitas, que o que fazemos sempre pode ser mais rico, mais interessante, e que temos que dar um fim porque não há outra possibilidade, se não a de não estrear jamais.


Depois de inseguranças, crises e emoções à flor da pele, a impressão é que tudo passa a se ajustar e que os deuses do teatro começam realmente a trabalhar. E os que atendem pelos nomes de Flávio Graff e Paulo César Medeiros são os que merecem os agradecimentos especiais dessa semana.


Elisa Pinheiro (Lucera)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

A REUNIÃO

Meus irmãos estão contra mim. É fato. Tenho que manter a calma e agir com a cabeça. Falar sempre de ponto de vista da vítima. Eles também não gostam de Ulrika...e eu posso ser a vítima de Ulrika. Essa idéia não é má. Basta colocar as coisas na hora certa. Falar  como se fosse um peso ter que carregar tudo sozinho nas costas...mulher, negócio, família. Acho que, por aí, pode funcionar. Só tenho que achar o momento certo pra falar. E me livrar de uma vez por todas de todos eles. Continuar preso apenas a Ulrika e aos meus próprios fantasmas...preso a mim mesmo...ao inevitável destino de cada um de nós. Desse eu não escapo. E não adianta mudar de cidade, nem de país...vou continuar comigo mesmo pra sempre. Mas é isso. Esse peso eu tenho que carregar. Não tenho outra saída a não ser carregá-lo e, se possível, carregá-lo muito feliz. Como os ratos, não acho que a saída seja o suicídio. Ainda não sinto pena suficiente de mim mesmo para realizá-lo. E acho que vale a pena seguir, nem que seja só pra confirmar o que já sabemos desde sempre e jamais admitimos: nada disso faz o menor sentido. A aritmética é um equívoco monumental...

RAINER (José Karini)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Está chegando a hora...

A peça de Daniel Veronese impressiona pela força que ele consegue extrair de uma situação dramática simples. Um almoço de três irmãos e suas esposas na residência de um dos casais para resolver o encerramento de um negócio familiar. A dramaturgia começa a se desenvolver de modo quase tolo. Mas eis que ressentimentos, histórias mal contadas, desconfianças, segredos obscuros, desejos reprimidos começam a vir à tona. Em um primeiro momento, de modo ainda civilizado, com os personagens tentando manter um ambiente sociável. Contudo, o acúmulo destas vilezas acaba por gerar uma força que arruína qualquer possibilidade de convivência saudável.

Provavelmente a palavra que melhor define o texto é violência. A violência a princípio psicológica que, inevitavelmente, descamba para o físico. A violência do fracasso afetivo do núcleo familiar e da própria sociedade, uma vez que um é espelho do outro. Nesse sentido, podemos dizer que a obra de Veronese é extremamente política, ao colocar nesse microcosmo a representação das forças sociais, precárias por si só e ainda em confronto. No entanto, tudo é retratado com certo humor, um humor corrosivo e irônico que nos move a não apenas lamentar, mas a rir de nós mesmos, da nossa própria precariedade, e talvez tirar desse riso crítico, porém não distanciado, um anseio de mudança.

A partir de semana que vem, “Mulheres Sonharam Cavalos” passa a ocupar o Teatro Poeirinha de sexta a domingo. Estamos aquecendo os cavalos para a estréia:



Ivan Sugahara


sábado, 22 de outubro de 2011

Boxe

Cena 1

INTERIOR / DIA

Um ginásio de esportes com um ringue no centro. Vazio. A luz cresce no ringue enquanto o resto fica escuro gradualmente. Ouvimos passos ecoando e vemos alguns vultos aproximarem-se. Uma mulher num vestido sensual sobe e caminha até o centro do ringue.
Acende um cigarro. Fuma. Levanta o braço e quando abaixa ouvimos a campainha indicando o primeiro round.


Cena 2

INTERIOR / DIA - GINÁSIO / RINGUE

O primeiro round: Rainer X Roger.
A luta é violenta. Socam-se. Abraçam-se. O juiz é Ivan. Rainer cai na lona. Volta furioso pra cima de Roger, que perde o fôlego e cai. Ivan conta 1.... 2....3.... Rainer levanta Roger. Ajuda o irmão. Mas isso não é um ato de carinho: é pra se baterem mais. Recobram o fôlego e partem enlouquecidos um pra cima do outro. Ivan tenta separá-los sem sucesso. A luta fica cada vez mais violenta até que Ivan acaba levando um soco e cai desmaiado. Fim do primeiro round.

Cena 3

INTERIOR / DIA - GINÁSIO / RINGUE

O segundo round: Ulrika X Bettina.
Uma de cada lado do ringue. Caminham em direção ao centro. Lucera surge como juíza, levanta o braço e ao abaixá-lo soa a campainha do segundo round. Os olhos das mulheres se encarando. A boca vermelha de Bettina xingando Ulrika de "puta", lentamente. Não há som, entendemos o que diz por leitura labial. Ulrika responde xingando-a de "corna". Bettina cai na lona. Lucera conta 1...2...3...4... Bettina levanta-se e enfrenta Ulrika. Cospe em seu rosto. Ulrika lhe dá um tapa na cara e recebe outro, ainda mais violento. Agora é Ulrika  quem cai, gargalhando, na lona. Lucera fica confusa. As lutadoras se engalfinham. Lucera tenta separá-las mas não consegue. Desesperada, chama por Ivan. Fim do segundo round.


Cena 4

INTERIOR / DIA - GINÁSIO / RINGUE

O terceiro round: duas duplas ao mesmo tempo no ringue.
Rainer X Ulrika.
Bettina X Roger.
Ivan e Lucera são os juízes. As duplas andam em círculos, enfrentando-se com o olhar. Ouvimos barulhos de animais: rugidos de leões, cavalos relinchando, cachorros latindo e ganindo. O som vai aumentando assim como o ritmo das trocas de olhares. Lucera está perdida. Ivan tenta ter algum controle sobre as duplas. Aos sons dos animais misturam-se os das dulpas que se xingam, se agridem verbalmente, sem que possamos entender exatamente o que dizem. O som fica insuportável, os casais finalmente partem para a violência física. Se engalfinham. Ulrika arranha Rainer, que pega em seus braços violentamente, deixando marcas roxas. Bettina morde Roger, que lhe dá cacetadas. Ivan olha fixamente para Lucera.

Cena 5

EXTERIOR / DIA - PRAIA

Lucera sai correndo do ginásio. Está toda de branco. Desata em disparada.Os pés de Lucera correndo no chão do ginásio. Descalça. O chão do ginásio vira areia de praia. Lucera corre na praia deserta. Partes da sua roupa vão ficando para trás, até que ela fica nua. Aos poucos seu ritmo de corrida transforma-se num trotar. Lucera vira uma égua. Branca. Forte. Correndo. Eternamente.


Ulrika (Letícia Isnard)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O NEGÓCIO

O negócio dos colchões já não dava. Tentei levar adiante depois da morte de papai, mas confesso que estava muito difícil. Sem contar que Ulrika estava sendo muito sacrificada. Trabalhávamos dia e noite sem descanso. Tínhamos que cuidar da loja durante o dia e só restava a noite para fazer todo o resto, como, por exemplo, o trabalho de contabilidade. Eram só dois funcionários pra tudo e um carro velho pra fazer as entregas. Ou seja, sobrava sempre pra nós dois. E nunca tivemos a ajuda de ninguém. Meus irmãos jamais apareceram por lá e nunca se interessaram em saber como as coisas estavam caminhando. Então, que não venham me cobrar absolutamente nada. Cada um vai ficar com a sua parte e pronto. Aliás, o certo seria dividirmos os prejuízos do negócio. Se somos sócios, temos que dividir os ganhos e as perdas também. Mas nem faço questão. Desde que não me incomodem, está tudo certo. Só quero resolver tudo isso o quanto antes. Principalmente com Roger, já que com Ivan eu sei que não terei problemas. Ivan não liga a mínima e faz questão de não saber de nada. Mas Roger acha que devo prestar contas. Ele se acha um grande injustiçado. E, no entanto, jamais apareceu por lá pra tomar sequer um café! É brincadeira! O idiota acha que está sendo roubado. Não percebe que a realidade é dura e que ele ainda aje como o irmãozinho mais novo, o caçula que sempre gostou de ser mimado. Mas hoje eu acabo com isso...

RAINER (José Karini)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Arroz à Turca

Bettina pretende cozinhar para a família. Disse que fará Arroz à Turca. Pediu que Roger comprasse aspargos. Eu não gosto de aspargos. Ela sabe disso. E não encontrei nenhuma receita de arroz à turca que levasse aspargos. Quer me irritar.


 



RECEITA DE ARROZ TURCO

300grs de arroz parbolizado
1/4 cebola picada
2 dentes de alho picados
1 pau de canela
1 pera cortada em cubos
Caldo de galinha (o necessário)

Em uma panela refogue o alho, a cebola e o arroz. Adicione o pau de canela e o caldo de galinha. Deixe cozinhar por 4 minutos e retire a canela. Termine a cocção do arroz.
Retire do fogo e misture os cubos de pera. Decore com uma rama de canela e de pera e sirva quente.

Arroz turco

1 calabresa
1 cebola
100 g de bacon
2 copos de arroz
2 copos de macarrão
3 colheres de óleo

Aqueça uma panela e coloque todos ingredientes. Frite por 7 minutos. Tempere a gosto. Adicione água fervente até cobrir. Espere secar e sirva a vontade.

Arroz a la Turca

300 grs. de arroz
4 berenjenas tiernas
salsa de tomate
hinojo
pan rallado
harina
aceite y sal

Licuar las berenjenas, cortarlas en rodajas gruesas, salarlas y dejarlas escurrir. Enharinarlas y freírlas a fuego fuerte. Hervir el arroz en abundante agua salada. Calentar la salsa y condimentarlas con el hinojo picado fino.
Colocar el arroz en una fuente térmica. Poner encima las berenjenas y escurrirlas con salsa de tomate. Espolvorearlas con pan rallado y gratinar al horno.

ARROZ A TURCA

1/2 colher de sopa de azeite e manteiga derretida
1 chávena de cenouras e aipo, cortados finos
1 decilitro de caldo de legumes
1/2 colher de sopa de azeite e manteiga derretida
1/2 colher de sopa de cebola picada
200 gr. de cogumelos às rodas
1 a 2 colher de sopa de farinha
2 a 3 decilitro de caldo de legumes
1 colher de chá de sumo de limão
Sal

Preparação idêntica à do risotto.
1/2 colher de sopa de azeite e manteiga derretida
1 chávena de cenouras e aipo, cortados finos
1 decilitro de caldo de legumes
Juntar ao risotto e estufar tudo junto. Pôr o risotto e os legumes em camadas num tabuleiro de ir ao forno, untado de manteiga.
1/2 colher de sopa de azeite e manteiga derretida
1/2 colher de sopa de cebola picada
200 gr. de cogumelos às rodas
1 a 2 colher de sopa de farinha
2 a 3 decilitro de caldo de legumes
1 colher de chá de sumo de limão e sal
Preparar um Receita Molho de Cogumelos. Deitá-lo sobre o arroz e passá-lo ràpidamente pelo forno.
MODO DE FAZER RISOTTO
2 colher de sopa de azeite e manteiga derretida
1 cebola picada 250 gr. de arroz
6 decilitro de caldo de legumes ou água
Sal e alecrim
Deitar o líquido a ferver, e deixar cozer 15 a 20 m.
2 colher de sopa de queijo ralado
Eventualmente 20 gr. de manteiga fresca
Por último, misturar a manteiga e o queijo ao arroz, mexendo com um garfo.
MODO DE FAZER MOLHO DE COGUMELOS
1 colher de sopa de azeite e manteiga derretida
1 cebola picada
300 gr. de cogumelos frescos
Cortar os cogumelos em tiras finas e estufar 1/4 h.
1 a 2 colher de sopa de farinha
Polvilhar os cogumelos.
2 a 3 decilitro de caldo de legumes
1 colher de chá de sumo de limão e sal
Juntar aos cogumelos e cozer ainda aprox. 10 m.

Ulrika (Letícia Isnard)

"Só há um tipo de violência?"

Ontem, Paulo Cesar Medeiros – o iluminador do espetáculo – foi ao ensaio e, ao fim do nosso primeiro passadão, falou sobre um dos temas que mais se fazem presentes na peça: a violência. E trouxe um dado que torna ainda mais rica a discussão. Os diferentes níveis e tipos de violência. Lucera diz em dado momento: “Existe um novo tipo de violência no ar”. É disso que Paulinho fala, sobre como pode ser cruel a falta de comunicação, por exemplo. Usou experiências pessoais como argumentos, mas a nossa peça traz exatamente essa questão como tema primordial. Além da violência concreta existente ao longo de todo o texto – exposta na forma bruta que os três irmãos (Ivan, Rainer e Roger) usam para se relacionar, para resolver problemas e até para amar – um dos motes da peça é a ignorância de Lucera sobre suas origens, informações que os irmãos dominam, mas não expõem. Ou explicam de forma tortuosa, suspeita. Por culpa? Por medo de perdê-la? Para se defenderem de um crime? Não se sabe ao certo, mas a forma como essa dúvida reverbera em Lucera denuncia o tamanho da violência que ela representa. É uma menina que nunca se enquadrou em seu núcleo familiar, não se sente protegida. Uma pessoa à margem, sem identidade, e todo esse vazio e as relações que derivam dele são ruminados de tal forma durante seu crescimento, que em algum momento esse tipo de criação vai ter que mostrar suas conseqüências. E muito provavelmente elas serão violentas, seja no nível que for. Criada em um ambiente em que tudo se resolve na força e no ataque, das duas uma: ou ela vai se rebelar contra suas referências (e, nesse caso, a rebeldia significaria a mansidão, a placidez), ou vai fazer jus à sua criação (que não deixa de ter amor, mas de um tipo muito peculiar) e responder a tudo isso com a maneira que aprendeu e pela qual foi amplamente estimulada. Particularmente, creio mais na segunda opção. Violência psicológica, violência física, violência moral. Em algum sentido, em algum momento e lugar, ela vai se manifestar.

Elisa Pinheiro (Lucera)

terça-feira, 18 de outubro de 2011

ETERNO RETORNO

Não gosto muito de lembrar fatos passados. As recordações são sempre um pouco mentirosas. Traiçoeiras e...perigosas. Não me arrependo de nada do que fiz. Mas confesso que o olhar acusador de Lucera me incomoda um pouco. Basta olhar pra ela e pronto: tudo retorna pela milésima vez. Acho que o modo como ela me olha provoca essa espécie de eterno retorno do mesmo. Só que eu sempre agi pensando no bem da família, principalmente enquanto papai esteve entre nós. Acho que ele percebia isso. E, agora, todos querem me culpar por tudo. Virei o culpado maior e o único responsável pelos males dessa família de fracassados. Mas isso vai acabar. Tem que acabar. Não quero mais o peso de carregar essa família nas costas sem ter nenhum reconhecimento por isso. E também não quero mais o olhar acusador de Lucera e da família. O de Ulrika me é necessário, Mas o resto, quero que se foda! Às vezes eu gostaria de simplesmente não ter memória. De poder estar em um perpétuo movimento de recomeço...sem fins...nem começos...

RAINER (José Karini)

sábado, 15 de outubro de 2011

A origem do projeto

Assisti à montagem de Mulheres Sonharam Cavalos em Buenos Aires, em 2002. O impacto da peça foi imenso não só pela beleza e violência do texto, mas também pelo contraste entre a densidade dramática da cena e os risos nervosos que provocava no público. Uma peça simples e potente. Em 2005 consegui comprar o livro onde o texto foi publicado e comecei o processo de tradução. Além da atualidade das questões do texto, que atravessam confrontos familiares para mergulhar em temas como violência, repressão, impunidade, manipulação da produção da memória, solidão, falta de perspectiva e falência econômica, entre outros, a peça fala sobre nosso recente processo histórico através de um texto que não é “datado”, e que reflete não só sobre os acontecimentos históricos, mas também sobre o legado que deixam para as gerações seguintes.


Ao falar desses temas, a montagem desta peça - que estende minha parceria com Ivan Sugahara para além do nosso trabalho na cia Os dezequilibrados - concretiza um sonho antigo de juntar ao meu trabalho de atriz, minha prática acadêmica. Em 2002 defendi minha dissertação de Mestrado em Sociologia com concentração em Antropologia no IFCS/UFRJ, e em seguida ganhei uma bolsa do Social Science Research Council (SSRC) para participar do projeto “Memória Coletiva e Repressão: perspectivas comparativas sobre os processos de redemocratização dos países do Cone Sul e Peru”. Éramos 16 bolsistas de países como Argentina, Chile, Paraguai, Peru, Uruguai, Estados Unidos e Brasil. O tema era a transmissão da memória da repressão para as gerações que não vivenciaram diretamente os regimes ditatoriais. Meu projeto falava da transmissão desta memória no teatro brasileiro contemporâneo, que praticamente não tratava do tema. Acabei fazendo um estudo comparativo com a Argentina, onde havia várias peças sobre o assunto. Explorei, então, a questão da ausência de transmissão desta memória pelo nosso teatro, o que em alguma medida comprovou a eficácia da lavagem cerebral que o regime militar brasileiro promoveu. Durante esta pesquisa fiquei 15 dias em Buenos Aires fazendo pesquisa de campo e foi nesta ocasião que assisti à montagem original da peça de Veronese.


Encantada com a quantidade e qualidade dos textos produzidos pelos autores argentinos, acabei me envolvendo como tradutora, produtora e atriz de três peças contemporâneas. Além de Mulheres Sonharam Cavalos, dois textos de Rafael Spregelburd: A Estupidez, que encenei este ano com a cia Os dezequilibrados; e A Modéstia, traduzida por mim, Isabel Cavalcanti e Pedro Brício, que vai dirigi-la e que está prevista para estrear em março de 2012. Essas montagens visam estreitar o diálogo intercultural com o teatro argentino. Se a circulação de textos de autores latino-americanos se dá de forma precária nos países de língua espanhola, a barreira do idioma agrava ainda mais o isolamento e a falta de intercâmbio da produção cultural do Brasil com os países vizinhos. Portanto, acredito ser preciso incentivar e estimular esta interlocução, viabilizando o diálogo e a reflexão do que nos diferencia e também das questões que temos em comum.


Letícia Isnard

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Uma ligeira suspeita

BETTINA
Sempre tive a ligeira suspeita de que há uns anos vocês três foram assassinos em série. Foram? Pela forma como brigam. Responde, Ivan. (pausa) Bem, pelo menos eu te fiz rir. Quando ri você parece um cavalinho recém-nascido...

Uma mulher em um quarto

RAINER
Ulrika está escrevendo roteiros pra cinema e eu acho que talvez ela pudesse ler algo pra nós:



LUCERA
É terrivelmente belo. Quisera eu poder escrever isso. Quem me dera eu pudesse me fechar pra escrever. Às vezes me angustio e sinto necessidade de me expressar. Então vomito.

Nos Corpos




São apontamentos possíveis. Todos prováveis.
Galgados no dia-a-dia do cotidiano familiar.
Corpos são como campos virgens, dizendo nos o que pode ser espantosamente belo, elegante e altivo, porém, soberano e majestosamente violento. A truculência é de beleza mortal.

Esta sedutora efervecência parece nos dar a realidade dos afetos mortos, o carinho interrompido pelo ódio do amor e o com ele, o massacre.
Há também um abraço torturante, montado sobre um beijo mordaz.

Dá-me enjôo. Pertenço e rumino esta família.

Estranho parece ser não lançar-se aos abismos desta história.
Olho para todos os lados e pareço estar perto do principio do fim.
Quero encontrar neste roteiro a alçada e o salto no vôo ao vazio.
Desejo incondicionalmente o medo, que me dá voltas e mais voltas.
Passadas em círculo.
O fim finalmente me ataca.

(Paula Maracajá)

HORA DE PARTIR

Minha vontade de ir embora desse lugar aumenta cada vez mais. Não existe mais nenhum motivo pra ficar. E, no entanto, parece que alguma coisa nos segura. Será o medo? Aquele medo terrível de ir pro mundo? Será que não temos mais idade pra isso? Ulrika fala o tempo todo que quer ir, mas não age. Parece que está amarrada a esse lugar...parece que se confunde com ele de um jeito definitivo. Tudo isso é muito angustiante. Acho que temos que agir. Está tudo preparado, calculado e planejado nos mínimos detalhes. Falta a decisão. Já ameaçamos ir várias vezes e não conseguimos. Mas acho que iremos amanhã...intuo que uma grande mudança está para acontecer nas nossas vidas. Hoje resolvo tudo com a família. E amanhã partimos. Só espero que Roger e Ivan não queiram encher meu saco por causa de dinheiro. Essa questão está resolvida. Eu cuidei do negócio sem a ajuda de ninguém. E de um jeito que papai teria se orgulhado. Mas agora acabou. E se alguém tem que ficar com alguma coisa, sou eu. Trata-se simplesmente de justiça. Eles sabem disso. Mas vão querer encher meu saco mesmo assim...sei disso. Merda!

RAINER (José Karini)


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Eles e eu

Meu nome é Lucera, tenho cabelos loiros, cacheados e curtos, estatura média para baixa. Estou agora um pouco mais gorda, mas sempre fui minguada. Tenho 20 anos, dos quais só me lembro 16 e gostaria muito de descobrir como foram os primeiros quatro. Não porque queira saber como comecei a falar, a andar, ou quem eram meus amiguinhos e qual foi o tema da minha primeira festa de aniversário. Quero lembrar porque não sei quem são meus pais, o que aconteceu com eles e quem são esses três homens que constituem minha família. Me acham esquisita e me seduzem. Me chamam de chata e me cobram gratidão. Me encontraram dentro de um saco plástico num lixão? Abriram a porta ao ouvir o som da campainha e me tiraram de uma cesta? Me adotaram pelas vias legais? Me acharam, como diz Ivan, meu marido, num descampado perto dos corpos dos meus pais e do cavalo que os levava, que teria se suicidado? Ou esses três homens mataram meus pais, torturaram-nos, fizeram com que eles me vendessem? Da minha história, só tenho perguntas. E sonhos, quando consigo dormir. Sonhos que procuram desvendar o vazio. A página em branco. Mas uma página que vai ser preenchida. Nem que para isso eu tenha que tomar uma atitude radical, impensada, imprevisível. Eles não me levam a sério. Mas em algum momento vão ter que me respeitar. E esse dia não vai demorar a chegar.  

Lucera (Elisa Pinheiro)




quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Cavalo-mania


Na pré-adolescência , começa em muitas meninas uma verdadeira cavalo-mania. Fabricantes de brinquedos criaram numerosas variações que satisfazem as meninas provisoriamente. Com esses brinquedos, elas podem, em nível simbólico, agir como cavalos e expressar no jogo tudo o que as emociona, dá medo ou mexe com as suas mentes. (...) De onde vem a grande força de atração que os cavalos têm sobre as nossas filhas?

Sabemos, pela história e pela mitologia, que o cavalo acompanhou o homem desde sempre. Fora o cachorro, não existe nenhum outro animal que tenha servido ao homem de tantas maneiras diferentes. Ninguém esperava que os cavalos, que desde os anos 50 foram assumindo aos poucos a agricultura, voltassem a ser usados e criados em um número tão grande.

O cavalo é um símbolo arquetípico, ou imagem primordial com o qual o homem pode se comunicar de maneira única. (...) O cavalo alado supera espaço e tempo e mantém contato com os deuses. Será por isso que nós, mulheres, temos uma relação especial com eles? Unicórnios são seres lendários de enorme beleza. Um mito de importância especial se evidencia nos centauros. Eles têm corpo de cavalo, mas cabeça e peito de homem, o que poderia ser interpretado como simbiose dos impulsos animalescos com a razão humana.

Os psiquiatras de crianças e adolescentes consideram os cavalos extremamente adequados quando para simbolizar os desejos e medos das meninas. Sejam quais forem os motivos, muitas meninas amam os cavalos, e o contato com esses animais faz bem a elas. Quem aprender, com sucesso, a lidar com um cavalo ganhará autoconfiança, porque um cavalo é sempre mais forte do que o ser humano, mas se deixa, mesmo assim, conduzir e dirigir por ele.

Na análise dos psiquiatras, como parceiro o cavalo não tem muitas exigências e é pouco problemático. (...) Através deles, as meninas compreendem que compromissos são possíveis sem perder a dignidade e que adaptação não significa submissão. As características que, à primeira vista, parecem contraditórias - grandeza, força, velocidade de um lado, submissão e obediência por outro - estão reunidas nesse amigo forte, encorajando, assim, a jovem a tentar também juntar aparentes oposições.

As meninas, quando em cima de um cavalo, vivenciam que atitudes comportamentais como ser simpática e delicada e, por outro lado impor-se e exercer poder são possíveis e compatíveis. Cavalos aumentam a força de vontade e a necessidade de se impor das meninas, porque elas têm que dominar o cavalo e, ao mesmo tempo, respeitar as regras. (...) O cavalo parece adequado a transmitir às meninas, sob muitos aspectos, o passo de que elas precisam para entrar na vida de mulheres adultas. Cavalgando e cuidando desse animal simbólico, elas vivenciam a sensação de estarem protegidas, mas também as de autonomia e poder.

PREUSCHOFF, Gisela. "Os primeiros anos na vida de uma menina".

 Ulrika (Letícia Isnard)