sábado, 1 de outubro de 2011

O Autor II

A poética de Veronese, uma das principais do teatro pós-ditadura, apresenta uma tensão criativa que repercute os ecos da experiência fantasmagórica do sentimento de sinistro gerado pelo genocídio, sem buscar uma referência direta na experiência política e nas narrativas que explicitam a revisão da história. Esses ecos ocorrem no interior das tramas dos textos e constituem ruídos na ordem da percepção de um mundo que parece sempre carente dos sentidos mais simples, mas remetem o público a seus próprios fantasmas. O lugar da cena reitera de forma permanente seu divórcio com as lógicas do mundo aparente e explicita como seu campo de diálogo com esse mundo se dá através da visita ao universo do pesadelos.

Sua dramaturgia não pode ser associada à idéia de uma obra definida por um estilo único, pois explora diferentes formas do texto visitando zonas de linguagens muito diversas. Isso não o conduziu, no entanto, a uma heterogeneidade autoral, mas sim a uma flexibilidade que se vincula principalmente com o febril exercício criativo do Veronese diretor.

Muitas das peças de Veronese experimentam uma zona que põem em crise a própria noção de representação de tal forma que se pode identificar traços de um teatro quase performativo onde o jogo entre representação e apresentação, e entre ator e personagem constitui elemento chave da cena. Temos, então, a escrita de um autor-diretor, que põe em cheque a fala teatral e faz desse exercício um dos elementos fundamentais de sua poética. Para ele, um dos fantasmas centrais é a própria idéia de representação. Se os títeres representam um evidente elemento sinistro e assustador – que norteou o teatro do Periférico – nas peças do autor o ato da representação e a condição do duplo, experimentada pelos atores, estabelece um terreno de estranhamento que será campo para a experiência junto ao público. Fazer visíveis as regras do teatral, e tomar a teatralidade como tema, ainda quando o eixo temático das peças não explicite esse objetivo, é uma das características desse teatro que insiste em pensar o evento teatral como experiência compartilhada ao redor das faltas.

A peça (...) Mulheres Sonharam Cavalos tem como tema os distintos tipos de violência manifestos em um núcleo familiar. (...) Veronese põe um lupa sobre os vínculos  familiares e os observa a partir tanto da violência latente como daquelas formas de violência que explodem nas famílias em determinadas situações. As tensões familiares são levadas ao extremo, mas também pela condição física proposta: um edifício habitado, mas inconcluso, um espaço pequeno que limita o movimento dos sujeitos. Ali está esse núcleo familiar: três irmãos e suas esposas que se encontram tensionados em meio à promessa de um jantar familiar. Percebe-se que a cada um deles falta algo. Todos parecem explicitar a percepção de um falta e reagem buscando estratégias de relacionamento que possam suprir suas respectivas carências. Assim, todos caminham para o inevitável embate.

Mulheres foi escrita, como afirma o autor, pensando nos períodos mais duros da ditadura quando desapareceu tanta gente, mas não se deve ler o texto a partir desse momento histórico porque a situação pode ser transportada a outros contextos. Isso permite que o público possa reconhecer em aspectos desta família os que lhe são comuns, que pertencem ao nosso cotidiano e por isso mesmo são como visitas aos fantasmas.


Mulheres Sonharam Cavalos é um título que no deixa uma sensação de algo incompleto. Há ali um elemento inacabado. Algo a ser construído ou impossível de ser determinado.

Trechos selecionados do artigo de CARREIRA, André. “Daniel Veronese: um teatro da falta”. Revista OLHARES / Dramaturgia latino-americana.

Letícia Isnard

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