sexta-feira, 28 de outubro de 2011

FRAGMENTO DE "MULHERES SONHARAM CAVALOS"

Sim. É uma situação muito delicada pra mim e suponho que não apenas pra mim. (PAUSA. GESTO). E não sei mais o que dizer. Por isso estou mexendo as mãos. Certamente pareço um idiota. Se quiserem posso dizer que sou um fracassado e logicamente também poderia acrescentar que quero me matar. Como quando nosso pai reunia nós três para ensinar aritmética e eu sentia que era só a gente pôr os números no lugar certo que o mundo se resolveria. Me senti assim quase a vida toda. Até hoje. Digo se A for para B como B é para...para... todos vão...me compreender, mas se eu digo que sou um fracassado e que, por exemplo, realmente tenho a necessidade de me atirar de cabeça deste prédio, mas me atirar de verdade, não vai faltar quem me diga: não faça isso, o dinheiro vai e vem, sempre há esperanças, viva a sua vida, aproveite antes que fique velho, porque eu não me considero velho. Porque eu não me considero velho. Mas também é fato que, e tenho que dizer isso porque é o que eu penso, e não me olhe assim, Ulrika...

RAINER (DANIEL VERONESE)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Quase um recomeço

Ontem, quando entramos na sala de ensaio, nos deparamos com um novo espaço. Aquele onde ensaiamos nos últimos dois meses já não existia. As tábuas corridas de madeira, as paredes pretas e os praticáveis de diferentes níveis continuavam lá, mas estavam revestidos da obra de arte que é o cenário de Flavio Graff. Além disso, Paulo Cesar Medeiros preparou sua potente luz para nos receber, conferindo ao espaço o clima que a peça tem – que buscamos nas relações entre os personagens – mas que, plasticamente, ainda não sabíamos exatamente como seria. Eu, pelo menos, descobri que não fazia a mais vaga idéia, pois fui absolutamente surpreendida pela beleza e força daquelas peças e daqueles refletores, que usam recursos simples para criar ambientes que variam da extrema potência até a enorme delicadeza, passando, é claro, pela mais crua violência.


É muito animador perceber como esses novos elementos podem trazer ainda mais vida a um processo que já é por si só estimulante. Artistas que se juntam, idéias que se completam, materiais que dão nova luz a questões emperradas, ou então tidas como solucionadas. Esse momento nos dá cada vez mais a certeza de que arte é movimento, que as possibilidades são infinitas, que o que fazemos sempre pode ser mais rico, mais interessante, e que temos que dar um fim porque não há outra possibilidade, se não a de não estrear jamais.


Depois de inseguranças, crises e emoções à flor da pele, a impressão é que tudo passa a se ajustar e que os deuses do teatro começam realmente a trabalhar. E os que atendem pelos nomes de Flávio Graff e Paulo César Medeiros são os que merecem os agradecimentos especiais dessa semana.


Elisa Pinheiro (Lucera)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

A REUNIÃO

Meus irmãos estão contra mim. É fato. Tenho que manter a calma e agir com a cabeça. Falar sempre de ponto de vista da vítima. Eles também não gostam de Ulrika...e eu posso ser a vítima de Ulrika. Essa idéia não é má. Basta colocar as coisas na hora certa. Falar  como se fosse um peso ter que carregar tudo sozinho nas costas...mulher, negócio, família. Acho que, por aí, pode funcionar. Só tenho que achar o momento certo pra falar. E me livrar de uma vez por todas de todos eles. Continuar preso apenas a Ulrika e aos meus próprios fantasmas...preso a mim mesmo...ao inevitável destino de cada um de nós. Desse eu não escapo. E não adianta mudar de cidade, nem de país...vou continuar comigo mesmo pra sempre. Mas é isso. Esse peso eu tenho que carregar. Não tenho outra saída a não ser carregá-lo e, se possível, carregá-lo muito feliz. Como os ratos, não acho que a saída seja o suicídio. Ainda não sinto pena suficiente de mim mesmo para realizá-lo. E acho que vale a pena seguir, nem que seja só pra confirmar o que já sabemos desde sempre e jamais admitimos: nada disso faz o menor sentido. A aritmética é um equívoco monumental...

RAINER (José Karini)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Está chegando a hora...

A peça de Daniel Veronese impressiona pela força que ele consegue extrair de uma situação dramática simples. Um almoço de três irmãos e suas esposas na residência de um dos casais para resolver o encerramento de um negócio familiar. A dramaturgia começa a se desenvolver de modo quase tolo. Mas eis que ressentimentos, histórias mal contadas, desconfianças, segredos obscuros, desejos reprimidos começam a vir à tona. Em um primeiro momento, de modo ainda civilizado, com os personagens tentando manter um ambiente sociável. Contudo, o acúmulo destas vilezas acaba por gerar uma força que arruína qualquer possibilidade de convivência saudável.

Provavelmente a palavra que melhor define o texto é violência. A violência a princípio psicológica que, inevitavelmente, descamba para o físico. A violência do fracasso afetivo do núcleo familiar e da própria sociedade, uma vez que um é espelho do outro. Nesse sentido, podemos dizer que a obra de Veronese é extremamente política, ao colocar nesse microcosmo a representação das forças sociais, precárias por si só e ainda em confronto. No entanto, tudo é retratado com certo humor, um humor corrosivo e irônico que nos move a não apenas lamentar, mas a rir de nós mesmos, da nossa própria precariedade, e talvez tirar desse riso crítico, porém não distanciado, um anseio de mudança.

A partir de semana que vem, “Mulheres Sonharam Cavalos” passa a ocupar o Teatro Poeirinha de sexta a domingo. Estamos aquecendo os cavalos para a estréia:



Ivan Sugahara


sábado, 22 de outubro de 2011

Boxe

Cena 1

INTERIOR / DIA

Um ginásio de esportes com um ringue no centro. Vazio. A luz cresce no ringue enquanto o resto fica escuro gradualmente. Ouvimos passos ecoando e vemos alguns vultos aproximarem-se. Uma mulher num vestido sensual sobe e caminha até o centro do ringue.
Acende um cigarro. Fuma. Levanta o braço e quando abaixa ouvimos a campainha indicando o primeiro round.


Cena 2

INTERIOR / DIA - GINÁSIO / RINGUE

O primeiro round: Rainer X Roger.
A luta é violenta. Socam-se. Abraçam-se. O juiz é Ivan. Rainer cai na lona. Volta furioso pra cima de Roger, que perde o fôlego e cai. Ivan conta 1.... 2....3.... Rainer levanta Roger. Ajuda o irmão. Mas isso não é um ato de carinho: é pra se baterem mais. Recobram o fôlego e partem enlouquecidos um pra cima do outro. Ivan tenta separá-los sem sucesso. A luta fica cada vez mais violenta até que Ivan acaba levando um soco e cai desmaiado. Fim do primeiro round.

Cena 3

INTERIOR / DIA - GINÁSIO / RINGUE

O segundo round: Ulrika X Bettina.
Uma de cada lado do ringue. Caminham em direção ao centro. Lucera surge como juíza, levanta o braço e ao abaixá-lo soa a campainha do segundo round. Os olhos das mulheres se encarando. A boca vermelha de Bettina xingando Ulrika de "puta", lentamente. Não há som, entendemos o que diz por leitura labial. Ulrika responde xingando-a de "corna". Bettina cai na lona. Lucera conta 1...2...3...4... Bettina levanta-se e enfrenta Ulrika. Cospe em seu rosto. Ulrika lhe dá um tapa na cara e recebe outro, ainda mais violento. Agora é Ulrika  quem cai, gargalhando, na lona. Lucera fica confusa. As lutadoras se engalfinham. Lucera tenta separá-las mas não consegue. Desesperada, chama por Ivan. Fim do segundo round.


Cena 4

INTERIOR / DIA - GINÁSIO / RINGUE

O terceiro round: duas duplas ao mesmo tempo no ringue.
Rainer X Ulrika.
Bettina X Roger.
Ivan e Lucera são os juízes. As duplas andam em círculos, enfrentando-se com o olhar. Ouvimos barulhos de animais: rugidos de leões, cavalos relinchando, cachorros latindo e ganindo. O som vai aumentando assim como o ritmo das trocas de olhares. Lucera está perdida. Ivan tenta ter algum controle sobre as duplas. Aos sons dos animais misturam-se os das dulpas que se xingam, se agridem verbalmente, sem que possamos entender exatamente o que dizem. O som fica insuportável, os casais finalmente partem para a violência física. Se engalfinham. Ulrika arranha Rainer, que pega em seus braços violentamente, deixando marcas roxas. Bettina morde Roger, que lhe dá cacetadas. Ivan olha fixamente para Lucera.

Cena 5

EXTERIOR / DIA - PRAIA

Lucera sai correndo do ginásio. Está toda de branco. Desata em disparada.Os pés de Lucera correndo no chão do ginásio. Descalça. O chão do ginásio vira areia de praia. Lucera corre na praia deserta. Partes da sua roupa vão ficando para trás, até que ela fica nua. Aos poucos seu ritmo de corrida transforma-se num trotar. Lucera vira uma égua. Branca. Forte. Correndo. Eternamente.


Ulrika (Letícia Isnard)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O NEGÓCIO

O negócio dos colchões já não dava. Tentei levar adiante depois da morte de papai, mas confesso que estava muito difícil. Sem contar que Ulrika estava sendo muito sacrificada. Trabalhávamos dia e noite sem descanso. Tínhamos que cuidar da loja durante o dia e só restava a noite para fazer todo o resto, como, por exemplo, o trabalho de contabilidade. Eram só dois funcionários pra tudo e um carro velho pra fazer as entregas. Ou seja, sobrava sempre pra nós dois. E nunca tivemos a ajuda de ninguém. Meus irmãos jamais apareceram por lá e nunca se interessaram em saber como as coisas estavam caminhando. Então, que não venham me cobrar absolutamente nada. Cada um vai ficar com a sua parte e pronto. Aliás, o certo seria dividirmos os prejuízos do negócio. Se somos sócios, temos que dividir os ganhos e as perdas também. Mas nem faço questão. Desde que não me incomodem, está tudo certo. Só quero resolver tudo isso o quanto antes. Principalmente com Roger, já que com Ivan eu sei que não terei problemas. Ivan não liga a mínima e faz questão de não saber de nada. Mas Roger acha que devo prestar contas. Ele se acha um grande injustiçado. E, no entanto, jamais apareceu por lá pra tomar sequer um café! É brincadeira! O idiota acha que está sendo roubado. Não percebe que a realidade é dura e que ele ainda aje como o irmãozinho mais novo, o caçula que sempre gostou de ser mimado. Mas hoje eu acabo com isso...

RAINER (José Karini)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Arroz à Turca

Bettina pretende cozinhar para a família. Disse que fará Arroz à Turca. Pediu que Roger comprasse aspargos. Eu não gosto de aspargos. Ela sabe disso. E não encontrei nenhuma receita de arroz à turca que levasse aspargos. Quer me irritar.


 



RECEITA DE ARROZ TURCO

300grs de arroz parbolizado
1/4 cebola picada
2 dentes de alho picados
1 pau de canela
1 pera cortada em cubos
Caldo de galinha (o necessário)

Em uma panela refogue o alho, a cebola e o arroz. Adicione o pau de canela e o caldo de galinha. Deixe cozinhar por 4 minutos e retire a canela. Termine a cocção do arroz.
Retire do fogo e misture os cubos de pera. Decore com uma rama de canela e de pera e sirva quente.

Arroz turco

1 calabresa
1 cebola
100 g de bacon
2 copos de arroz
2 copos de macarrão
3 colheres de óleo

Aqueça uma panela e coloque todos ingredientes. Frite por 7 minutos. Tempere a gosto. Adicione água fervente até cobrir. Espere secar e sirva a vontade.

Arroz a la Turca

300 grs. de arroz
4 berenjenas tiernas
salsa de tomate
hinojo
pan rallado
harina
aceite y sal

Licuar las berenjenas, cortarlas en rodajas gruesas, salarlas y dejarlas escurrir. Enharinarlas y freírlas a fuego fuerte. Hervir el arroz en abundante agua salada. Calentar la salsa y condimentarlas con el hinojo picado fino.
Colocar el arroz en una fuente térmica. Poner encima las berenjenas y escurrirlas con salsa de tomate. Espolvorearlas con pan rallado y gratinar al horno.

ARROZ A TURCA

1/2 colher de sopa de azeite e manteiga derretida
1 chávena de cenouras e aipo, cortados finos
1 decilitro de caldo de legumes
1/2 colher de sopa de azeite e manteiga derretida
1/2 colher de sopa de cebola picada
200 gr. de cogumelos às rodas
1 a 2 colher de sopa de farinha
2 a 3 decilitro de caldo de legumes
1 colher de chá de sumo de limão
Sal

Preparação idêntica à do risotto.
1/2 colher de sopa de azeite e manteiga derretida
1 chávena de cenouras e aipo, cortados finos
1 decilitro de caldo de legumes
Juntar ao risotto e estufar tudo junto. Pôr o risotto e os legumes em camadas num tabuleiro de ir ao forno, untado de manteiga.
1/2 colher de sopa de azeite e manteiga derretida
1/2 colher de sopa de cebola picada
200 gr. de cogumelos às rodas
1 a 2 colher de sopa de farinha
2 a 3 decilitro de caldo de legumes
1 colher de chá de sumo de limão e sal
Preparar um Receita Molho de Cogumelos. Deitá-lo sobre o arroz e passá-lo ràpidamente pelo forno.
MODO DE FAZER RISOTTO
2 colher de sopa de azeite e manteiga derretida
1 cebola picada 250 gr. de arroz
6 decilitro de caldo de legumes ou água
Sal e alecrim
Deitar o líquido a ferver, e deixar cozer 15 a 20 m.
2 colher de sopa de queijo ralado
Eventualmente 20 gr. de manteiga fresca
Por último, misturar a manteiga e o queijo ao arroz, mexendo com um garfo.
MODO DE FAZER MOLHO DE COGUMELOS
1 colher de sopa de azeite e manteiga derretida
1 cebola picada
300 gr. de cogumelos frescos
Cortar os cogumelos em tiras finas e estufar 1/4 h.
1 a 2 colher de sopa de farinha
Polvilhar os cogumelos.
2 a 3 decilitro de caldo de legumes
1 colher de chá de sumo de limão e sal
Juntar aos cogumelos e cozer ainda aprox. 10 m.

Ulrika (Letícia Isnard)

"Só há um tipo de violência?"

Ontem, Paulo Cesar Medeiros – o iluminador do espetáculo – foi ao ensaio e, ao fim do nosso primeiro passadão, falou sobre um dos temas que mais se fazem presentes na peça: a violência. E trouxe um dado que torna ainda mais rica a discussão. Os diferentes níveis e tipos de violência. Lucera diz em dado momento: “Existe um novo tipo de violência no ar”. É disso que Paulinho fala, sobre como pode ser cruel a falta de comunicação, por exemplo. Usou experiências pessoais como argumentos, mas a nossa peça traz exatamente essa questão como tema primordial. Além da violência concreta existente ao longo de todo o texto – exposta na forma bruta que os três irmãos (Ivan, Rainer e Roger) usam para se relacionar, para resolver problemas e até para amar – um dos motes da peça é a ignorância de Lucera sobre suas origens, informações que os irmãos dominam, mas não expõem. Ou explicam de forma tortuosa, suspeita. Por culpa? Por medo de perdê-la? Para se defenderem de um crime? Não se sabe ao certo, mas a forma como essa dúvida reverbera em Lucera denuncia o tamanho da violência que ela representa. É uma menina que nunca se enquadrou em seu núcleo familiar, não se sente protegida. Uma pessoa à margem, sem identidade, e todo esse vazio e as relações que derivam dele são ruminados de tal forma durante seu crescimento, que em algum momento esse tipo de criação vai ter que mostrar suas conseqüências. E muito provavelmente elas serão violentas, seja no nível que for. Criada em um ambiente em que tudo se resolve na força e no ataque, das duas uma: ou ela vai se rebelar contra suas referências (e, nesse caso, a rebeldia significaria a mansidão, a placidez), ou vai fazer jus à sua criação (que não deixa de ter amor, mas de um tipo muito peculiar) e responder a tudo isso com a maneira que aprendeu e pela qual foi amplamente estimulada. Particularmente, creio mais na segunda opção. Violência psicológica, violência física, violência moral. Em algum sentido, em algum momento e lugar, ela vai se manifestar.

Elisa Pinheiro (Lucera)

terça-feira, 18 de outubro de 2011

ETERNO RETORNO

Não gosto muito de lembrar fatos passados. As recordações são sempre um pouco mentirosas. Traiçoeiras e...perigosas. Não me arrependo de nada do que fiz. Mas confesso que o olhar acusador de Lucera me incomoda um pouco. Basta olhar pra ela e pronto: tudo retorna pela milésima vez. Acho que o modo como ela me olha provoca essa espécie de eterno retorno do mesmo. Só que eu sempre agi pensando no bem da família, principalmente enquanto papai esteve entre nós. Acho que ele percebia isso. E, agora, todos querem me culpar por tudo. Virei o culpado maior e o único responsável pelos males dessa família de fracassados. Mas isso vai acabar. Tem que acabar. Não quero mais o peso de carregar essa família nas costas sem ter nenhum reconhecimento por isso. E também não quero mais o olhar acusador de Lucera e da família. O de Ulrika me é necessário, Mas o resto, quero que se foda! Às vezes eu gostaria de simplesmente não ter memória. De poder estar em um perpétuo movimento de recomeço...sem fins...nem começos...

RAINER (José Karini)

sábado, 15 de outubro de 2011

A origem do projeto

Assisti à montagem de Mulheres Sonharam Cavalos em Buenos Aires, em 2002. O impacto da peça foi imenso não só pela beleza e violência do texto, mas também pelo contraste entre a densidade dramática da cena e os risos nervosos que provocava no público. Uma peça simples e potente. Em 2005 consegui comprar o livro onde o texto foi publicado e comecei o processo de tradução. Além da atualidade das questões do texto, que atravessam confrontos familiares para mergulhar em temas como violência, repressão, impunidade, manipulação da produção da memória, solidão, falta de perspectiva e falência econômica, entre outros, a peça fala sobre nosso recente processo histórico através de um texto que não é “datado”, e que reflete não só sobre os acontecimentos históricos, mas também sobre o legado que deixam para as gerações seguintes.


Ao falar desses temas, a montagem desta peça - que estende minha parceria com Ivan Sugahara para além do nosso trabalho na cia Os dezequilibrados - concretiza um sonho antigo de juntar ao meu trabalho de atriz, minha prática acadêmica. Em 2002 defendi minha dissertação de Mestrado em Sociologia com concentração em Antropologia no IFCS/UFRJ, e em seguida ganhei uma bolsa do Social Science Research Council (SSRC) para participar do projeto “Memória Coletiva e Repressão: perspectivas comparativas sobre os processos de redemocratização dos países do Cone Sul e Peru”. Éramos 16 bolsistas de países como Argentina, Chile, Paraguai, Peru, Uruguai, Estados Unidos e Brasil. O tema era a transmissão da memória da repressão para as gerações que não vivenciaram diretamente os regimes ditatoriais. Meu projeto falava da transmissão desta memória no teatro brasileiro contemporâneo, que praticamente não tratava do tema. Acabei fazendo um estudo comparativo com a Argentina, onde havia várias peças sobre o assunto. Explorei, então, a questão da ausência de transmissão desta memória pelo nosso teatro, o que em alguma medida comprovou a eficácia da lavagem cerebral que o regime militar brasileiro promoveu. Durante esta pesquisa fiquei 15 dias em Buenos Aires fazendo pesquisa de campo e foi nesta ocasião que assisti à montagem original da peça de Veronese.


Encantada com a quantidade e qualidade dos textos produzidos pelos autores argentinos, acabei me envolvendo como tradutora, produtora e atriz de três peças contemporâneas. Além de Mulheres Sonharam Cavalos, dois textos de Rafael Spregelburd: A Estupidez, que encenei este ano com a cia Os dezequilibrados; e A Modéstia, traduzida por mim, Isabel Cavalcanti e Pedro Brício, que vai dirigi-la e que está prevista para estrear em março de 2012. Essas montagens visam estreitar o diálogo intercultural com o teatro argentino. Se a circulação de textos de autores latino-americanos se dá de forma precária nos países de língua espanhola, a barreira do idioma agrava ainda mais o isolamento e a falta de intercâmbio da produção cultural do Brasil com os países vizinhos. Portanto, acredito ser preciso incentivar e estimular esta interlocução, viabilizando o diálogo e a reflexão do que nos diferencia e também das questões que temos em comum.


Letícia Isnard

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Uma ligeira suspeita

BETTINA
Sempre tive a ligeira suspeita de que há uns anos vocês três foram assassinos em série. Foram? Pela forma como brigam. Responde, Ivan. (pausa) Bem, pelo menos eu te fiz rir. Quando ri você parece um cavalinho recém-nascido...

Uma mulher em um quarto

RAINER
Ulrika está escrevendo roteiros pra cinema e eu acho que talvez ela pudesse ler algo pra nós:



LUCERA
É terrivelmente belo. Quisera eu poder escrever isso. Quem me dera eu pudesse me fechar pra escrever. Às vezes me angustio e sinto necessidade de me expressar. Então vomito.

Nos Corpos




São apontamentos possíveis. Todos prováveis.
Galgados no dia-a-dia do cotidiano familiar.
Corpos são como campos virgens, dizendo nos o que pode ser espantosamente belo, elegante e altivo, porém, soberano e majestosamente violento. A truculência é de beleza mortal.

Esta sedutora efervecência parece nos dar a realidade dos afetos mortos, o carinho interrompido pelo ódio do amor e o com ele, o massacre.
Há também um abraço torturante, montado sobre um beijo mordaz.

Dá-me enjôo. Pertenço e rumino esta família.

Estranho parece ser não lançar-se aos abismos desta história.
Olho para todos os lados e pareço estar perto do principio do fim.
Quero encontrar neste roteiro a alçada e o salto no vôo ao vazio.
Desejo incondicionalmente o medo, que me dá voltas e mais voltas.
Passadas em círculo.
O fim finalmente me ataca.

(Paula Maracajá)

HORA DE PARTIR

Minha vontade de ir embora desse lugar aumenta cada vez mais. Não existe mais nenhum motivo pra ficar. E, no entanto, parece que alguma coisa nos segura. Será o medo? Aquele medo terrível de ir pro mundo? Será que não temos mais idade pra isso? Ulrika fala o tempo todo que quer ir, mas não age. Parece que está amarrada a esse lugar...parece que se confunde com ele de um jeito definitivo. Tudo isso é muito angustiante. Acho que temos que agir. Está tudo preparado, calculado e planejado nos mínimos detalhes. Falta a decisão. Já ameaçamos ir várias vezes e não conseguimos. Mas acho que iremos amanhã...intuo que uma grande mudança está para acontecer nas nossas vidas. Hoje resolvo tudo com a família. E amanhã partimos. Só espero que Roger e Ivan não queiram encher meu saco por causa de dinheiro. Essa questão está resolvida. Eu cuidei do negócio sem a ajuda de ninguém. E de um jeito que papai teria se orgulhado. Mas agora acabou. E se alguém tem que ficar com alguma coisa, sou eu. Trata-se simplesmente de justiça. Eles sabem disso. Mas vão querer encher meu saco mesmo assim...sei disso. Merda!

RAINER (José Karini)


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Eles e eu

Meu nome é Lucera, tenho cabelos loiros, cacheados e curtos, estatura média para baixa. Estou agora um pouco mais gorda, mas sempre fui minguada. Tenho 20 anos, dos quais só me lembro 16 e gostaria muito de descobrir como foram os primeiros quatro. Não porque queira saber como comecei a falar, a andar, ou quem eram meus amiguinhos e qual foi o tema da minha primeira festa de aniversário. Quero lembrar porque não sei quem são meus pais, o que aconteceu com eles e quem são esses três homens que constituem minha família. Me acham esquisita e me seduzem. Me chamam de chata e me cobram gratidão. Me encontraram dentro de um saco plástico num lixão? Abriram a porta ao ouvir o som da campainha e me tiraram de uma cesta? Me adotaram pelas vias legais? Me acharam, como diz Ivan, meu marido, num descampado perto dos corpos dos meus pais e do cavalo que os levava, que teria se suicidado? Ou esses três homens mataram meus pais, torturaram-nos, fizeram com que eles me vendessem? Da minha história, só tenho perguntas. E sonhos, quando consigo dormir. Sonhos que procuram desvendar o vazio. A página em branco. Mas uma página que vai ser preenchida. Nem que para isso eu tenha que tomar uma atitude radical, impensada, imprevisível. Eles não me levam a sério. Mas em algum momento vão ter que me respeitar. E esse dia não vai demorar a chegar.  

Lucera (Elisa Pinheiro)




quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Cavalo-mania


Na pré-adolescência , começa em muitas meninas uma verdadeira cavalo-mania. Fabricantes de brinquedos criaram numerosas variações que satisfazem as meninas provisoriamente. Com esses brinquedos, elas podem, em nível simbólico, agir como cavalos e expressar no jogo tudo o que as emociona, dá medo ou mexe com as suas mentes. (...) De onde vem a grande força de atração que os cavalos têm sobre as nossas filhas?

Sabemos, pela história e pela mitologia, que o cavalo acompanhou o homem desde sempre. Fora o cachorro, não existe nenhum outro animal que tenha servido ao homem de tantas maneiras diferentes. Ninguém esperava que os cavalos, que desde os anos 50 foram assumindo aos poucos a agricultura, voltassem a ser usados e criados em um número tão grande.

O cavalo é um símbolo arquetípico, ou imagem primordial com o qual o homem pode se comunicar de maneira única. (...) O cavalo alado supera espaço e tempo e mantém contato com os deuses. Será por isso que nós, mulheres, temos uma relação especial com eles? Unicórnios são seres lendários de enorme beleza. Um mito de importância especial se evidencia nos centauros. Eles têm corpo de cavalo, mas cabeça e peito de homem, o que poderia ser interpretado como simbiose dos impulsos animalescos com a razão humana.

Os psiquiatras de crianças e adolescentes consideram os cavalos extremamente adequados quando para simbolizar os desejos e medos das meninas. Sejam quais forem os motivos, muitas meninas amam os cavalos, e o contato com esses animais faz bem a elas. Quem aprender, com sucesso, a lidar com um cavalo ganhará autoconfiança, porque um cavalo é sempre mais forte do que o ser humano, mas se deixa, mesmo assim, conduzir e dirigir por ele.

Na análise dos psiquiatras, como parceiro o cavalo não tem muitas exigências e é pouco problemático. (...) Através deles, as meninas compreendem que compromissos são possíveis sem perder a dignidade e que adaptação não significa submissão. As características que, à primeira vista, parecem contraditórias - grandeza, força, velocidade de um lado, submissão e obediência por outro - estão reunidas nesse amigo forte, encorajando, assim, a jovem a tentar também juntar aparentes oposições.

As meninas, quando em cima de um cavalo, vivenciam que atitudes comportamentais como ser simpática e delicada e, por outro lado impor-se e exercer poder são possíveis e compatíveis. Cavalos aumentam a força de vontade e a necessidade de se impor das meninas, porque elas têm que dominar o cavalo e, ao mesmo tempo, respeitar as regras. (...) O cavalo parece adequado a transmitir às meninas, sob muitos aspectos, o passo de que elas precisam para entrar na vida de mulheres adultas. Cavalgando e cuidando desse animal simbólico, elas vivenciam a sensação de estarem protegidas, mas também as de autonomia e poder.

PREUSCHOFF, Gisela. "Os primeiros anos na vida de uma menina".

 Ulrika (Letícia Isnard)

terça-feira, 11 de outubro de 2011

VIOLÊNCIA

A violência já está a priori. Em algum momento, ela vai se manifestar. E, muitas vezes, sem aviso prévio. A questão é não lutar contra. É inútil. O mais pacífico dos homens pode ser completamente dominado por um ataque de violência que, muitas vezes, irá parecer absolutamente gratuito e sem sentido. Ele próprio não conseguirá compreender as motivações mais profundas do ataque. Não irá perceber que elas não vem dele...mas da raça. É muito maior do que qualquer um de nós. Não é algo dominável. Já percebi isso há algum tempo e medito muito sobre essa questão. Só nos resta a inteligência. E a inteligência não está, obviamente, na idéia pretensiosa de controlar a violência, como quer a nossa justiça constituída. Mas na aceitação de que isso não é possível e no estabelecimento de uma conduta que possa suavizá-la. Com a consciência da própria violência, é mais fácil evitá-la. É isso, pelo menos, o que busco. E, mesmo assim, ainda caio nas mesmas armadilhas. Não é uma tarefa fácil. Um gesto, um olhar, uma palavra mal colocada e pronto. Vai tudo por água abaixo. Acho que o trabalho é diário e pra sempre. E acho que, desse modo, vou dando conta de mim. Da minha violência, pelo menos...

RAINER (José Karini)

domingo, 9 de outubro de 2011

Um sonho

Um sonho que se repete:

Noite. Casa de fazenda.
Estou sentada numa cadeira na sala. De costas, um rabo de cavalo enorme, mas de cor diferente da do resto do meu cabelo. Preto.
Procuro meu cigarro e não encontro. Ouço o relincho e as patadas dos cavalos que estão no estábulo. Vou ver o que há.

Noite. Exterior.
A porta do estábulo. Abro a porta e quase sou atropelada pelos cavalos que saem galopando, fortes, livres, em fuga. Desatam em debandada. Quase me atropelam. Me assusto.

Interior do estábulo. Cada baia vai se revelando vazia, até que numa delas encontro Rainer, sentado numa cadeira. Ele tem meu maço  no bolso. Pega um cigarro e me pede fogo. Close do fogo no palito que eu seguro, encostando na ponta do cigarro. A brasa do cigarro aumentando com a tragada. A fumaça dispersando no ar. Uma brasa caindo no feno do chão. Não sabemos se caiu do meu palito ou do cigarro de Rainer. Assim que a brasa cai, um incêndio lambe o estábulo. Rainer queima, sentado, enquanto fuma o cigarro. Tranquilamente. Um sorriso cínico, quase, no canto esquerdo da boca.

Saio correndo do fogo e do lado de fora meu olhar sobe como se fosse uma grua de cinema, que sobe até ver a cena de cima: bandos de cavalos correndo como rios ao redor do estábulo em chamas. A luz do fogo sobre o dorso dos cavalos marrons tornando-os laranja.


Ulrika (Letícia Isnard)

sábado, 8 de outubro de 2011

Um novo tipo de violência

LUCERA
Ivan, meu marido, diz que me encontrou em um descampado da província de Córdoba. Eu não tinha nem um ano de idade. Que metros adiante encontraram destroçados os restos de uma charrete de corrida, o corpo de um cavalo e dois corpos humanos que corresponderiam aos meus pais. Tudo dava a entender que o cavalo se lançou ao vazio enlouquecido e meus pais, pra minha sorte, puderam me empurrar para fora do carro antes da queda.
Ivan disse que há umas três décadas atrás proliferou um vírus da serra cordobesa que atacava os cavalos, especialmente os de corrida. Fazia com que eles se lançassem ao abismo.



                                                                                           Foto: JohnBanbury

Quando comecei a escrever esta obra, há alguns anos, o fiz a partir de uma estranha notícia que me chegou (assim o intuo) distorcida: suicídios coletivos de mamíferos quadrúpedes (nunca soube que classe de animais eram estes). O informe dizia que se atiravam de um precipício, aparentemente sem causa. Aconteceu no interior da Argentina. Senti que devia escrever sobre essa necessidade de estar no ar, de viver no ar, quando a terra já não pode suportar o peso do nosso pensamento. Estando no ar, ao quê nos atrevemos? Há um novo tipo de violência no ar. Eu o vejo. Eu o sinto dentro de mim e dentro de muita gente. Então decidi escrever. O trabalho em cena é terreno de reconhecimento e dissecação desses sentimentos censurados e amorais que não nos permitimos expressar de modo algum. Algo do trabalho final me permite dizer por que algumas coisas são como são.                                                          

Daniel Veronese

                                                                         publicação de Ivan Sugahara

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

LUCERA

Lucera sempre foi estranha. Desde pequena. Nunca teve um comportamento normal e acabava se isolando das outras crianças. Não brincava, comia pouco, não tinha amigas e a única coisa que a entretia era a leitura. Gostava de se encerrar em algum cômodo da casa para ler e ali ficava durante horas. Uma chata. E ainda é chata. Só que, agora, isso pode incomodar. Ela cisma com algumas coisas e não descansa enquanto aquilo não for resolvido. Ultimamente anda perguntando sobre o passado. Quer saber de onde veio. E coloca as coisas como se nós fôssemos os culpados pela sua situação. Mas se esquece de nos agradecer. Se esquece que só está viva por nossa causa. Se esquece de que fomos nós que a criamos e a educamos da melhor maneira possível. E eu acho isso uma sacanagem! Nunca tive saco pra Lucera. E agora menos ainda. Ao contrário do Ivan. Ele sempre quis ser o pai e sentia muito ciúme quando algum de nós assumia o papel. Acho que desde sempre ele foi apaixonado por Lucera. Amor, na minha opinião, doente. Mas quem sou eu pra julgar alguém? Só quero um pouco de tranquilidade pra resolver alguns problemas, cair fora e não pensar em mais nada. Ulrika merece, apesar de tudo. E Lucera tem que parar de encher o saco...

RAINER (José Karini)

Um simples ataque de pelanca

No início, tudo são flores. Novidades, expectativas, descobertas. Mas chega um momento, lá pelo meio do caminho, em que nos deparamos com dificuldades que não prevíamos, ou que esperávamos que não viessem – ao menos com a intensidade com que por vezes se apresentam.

Pois nesta semana, ao final de um dia de ensaio, me bateu uma crise repentina e por uns momentos me vi em guerra com Lucera. Uma ansiedade como se a estréia fosse no dia seguinte, como se não houvesse um diretor como parceiro, como se ainda não existissem algumas semanas de muito trabalho, fundamentais para que atriz e personagem se entendam e cheguem a um lugar especial, de cumplicidade, em que uma vai se orgulhar e crescer com a outra. E, assim, dar início a uma temporada que siga gerando frutos e abrindo caminhos que estreitem ainda mais essa relação.

O fato é que não é fácil aceitar que às vezes o personagem não é dado de bandeja pelo autor. Que ele tem conflitos também obscuros, atitudes a princípio incoerentes, e que é preciso muita pesquisa e dedicação para que tudo vá se encaixando e clareando aos poucos. Minha reação imediata foi culpar esse autor, reclamar dessa personagem e cobrar do diretor uma ajuda para encontrar a luz no fim desse túnel, mais comprido do que eu calculava.

Mas bastou um “dia seguinte” e um diretor sereno e esperto para que, com apenas um exercício de menos de uma hora – mas objetivo e certeiro – meu histerismo tenha dado lugar à confiança nas quatro semanas que nos restam. Na função que elas terão no processo de construção desse personagem e de suas relações com os demais. Lucera é estranha sim, é enigmática sim. Mas é justamente isso que faz dela alguém especial, cuja história merece ser contada e desvendada, como propõe o autor. E agora, chega de choramingos e mãos à obra.

Elisa Pinheiro (Lucera)

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Sonhando com Cavalos

                             

Na linguagem dos símbolos, o cavalo está na origem de uma série de imagens que exprimem a liberdade dos impulsos, o reconhecimento das pulsões naturais. Através da dinâmica onírica, o cavalo conduz o sonhador ao centro de um confronto entre a repressão dos impulsos e a exaltação imaginativa. Assim, poderíamos dizer que o cavalo é uma espécie de guia, dotado da clarividência do instinto, que convida a uma reabilitação das pulsões recalcadas ou mal sublimadas.


O cavalo é o símbolo da força e da paixão. Quando aparece nos sonhos, muitas vezes está relacionado à libido. Quando, por exemplo, o cavalo joga a sonhadora no chão, exprime uma dificuldade sexual, o que também costuma ser simbolizado pelo seu coice. Galopando, evidencia o instinto erótico que o sonhador não consegue dominar.


O cavalo é, portanto, uma das formas simbólicas mais puras da natureza instintiva, é a energia que gera o fluxo da vida. O cavaleiro somos nós, enquanto que o cavalo é o símbolo da nossa energia instintiva e animal. Quando juntos significam o movimento harmônico da natureza. O cavalo simboliza o sentimento de se estar vivo, posto que representa o fluxo que não criamos, mas que nos carrega no exercício de nossa vida.


RAINER (José Karini)
Ulrika, os policiais do seu roteiro, estão cavalgando, não?

ULRIKA (Letícia Isnard)
Sim.

RAINER
Você então vai dar a entender que os cavalos são os culpados pela degradação da espécie humana. Eu quero dizer que todos vão ver algo provocativo na imagem desses policiais porque estão sobre cavalos suados, certamente. E tem certa lógica. Está comprovado que as adolescentes sonham com cavalos quando começam a se desenvolver sexualmente.

BETTINA (Analu Prestes)
Eu acho que o cavalo é um belo animal.
As mulheres adultas, nós, também podemos sonhar com cavalos, por que não?

Madonna sonhou com cavalos:




                                                                                           Ivan Sugahara





Jantar em família

Roteiro para um curta-metragem. Quase um sonho.

Cena 1
EXTERIOR / NOITE

Um automóvel parado em frente a um prédio velho. Uma mulher sai. Close do pé da mulher, que veste uma bota de montaria. Vermelha. Apaga o cigarro com o pé. O automóvel sai. Aonde ele estava, sobra uma pilha de bosta de cavalo. Vemos o pé da mulher afastando-se da bosta e entrando no prédio.

Cena 2
INTERIOR / NOITE

A casa está repleta de pacotes, uma infinidade de pacotes embrulhados com jornais. Caixas da mudança. A pintura descascada, manchas de umidade. Alguns móveis velhos. Uma mesa de jantar improvisada sobre pilhas de livros, latas de tinta. As cadeiras são selas de montaria. A mulher entra, suspende a saia sensualmente, e monta na sela, à cabeceira da mesa. A mesa tem lugar para 6 pessoas. Pratos e talheres desiguais, descombinados. Da penumbra, surgem os outros convidados, que sentam-se à mesa. De um lado, Roger e Ivan. Do outro, Lucera e Bettina. Na cabeceira, Rainer. Então descobre-se que a mulher de bota vermelha sou eu.

O ar está pesado. todos acendem cigarros. Fumam. Os lábios sorvendo a fumaça. Os olhos duros, encarando-se. Sentem desejo uns pelos outros. Sentem ódio. São uma família onde ninguém confia em ninguém. O ódio real, intenso e profundo só é possível quando há muita intimidade, quando há muito amor. Quanto mais íntimos, mais intenso. 

O jantar é finalmente servido. Foi Bettina quem cozinhou a iguaria: escorpiões. Está orgulhosa, vem da cozinha sorrindo um sorriso largo e débil. Seu sorriso me dá medo. Bota um prato fumegante à minha frente, mas não se pode ver o que é, apenas a fumaça da comida. De repente, um estalo de chicote. E revela-se a imagem do prato:


Ulrika (Letícia Isnard)

terça-feira, 4 de outubro de 2011

BETTINA


Com Bettina, eu me divirto. Desde que Roger casou-se com ela, percebo que se irrita com facilidade. Ele parece ter desistido. Se esconde da vida em uma relação que fracassou antes mesmo de ter começado. E eu cheguei a pensar que Roger poderia ser, de nós, o único a dar certo. Ilusão. É tão merda quanto qualquer um de nós. E agora...já é tarde.

Até acho que Bettina trata bem o nosso caçula. Bom pra ele. E pra ela, que, assim, não precisa pensar na própria vida. Vive em função dele. Dedicação exclusiva.

E o engraçado é que não consigo sequer sentir ciúme. Acho que não aguentaria uma relação como essa. Ainda prefiro a bipolaridade e a loucura. Prefiro a dúvida e a possibilidade de morte que, com Ulrika, estão sempre presentes.

RAINER (José Karini)

Rose Gonçalves prepara a voz dos cavalos

sábado, 1 de outubro de 2011

O Autor II

A poética de Veronese, uma das principais do teatro pós-ditadura, apresenta uma tensão criativa que repercute os ecos da experiência fantasmagórica do sentimento de sinistro gerado pelo genocídio, sem buscar uma referência direta na experiência política e nas narrativas que explicitam a revisão da história. Esses ecos ocorrem no interior das tramas dos textos e constituem ruídos na ordem da percepção de um mundo que parece sempre carente dos sentidos mais simples, mas remetem o público a seus próprios fantasmas. O lugar da cena reitera de forma permanente seu divórcio com as lógicas do mundo aparente e explicita como seu campo de diálogo com esse mundo se dá através da visita ao universo do pesadelos.

Sua dramaturgia não pode ser associada à idéia de uma obra definida por um estilo único, pois explora diferentes formas do texto visitando zonas de linguagens muito diversas. Isso não o conduziu, no entanto, a uma heterogeneidade autoral, mas sim a uma flexibilidade que se vincula principalmente com o febril exercício criativo do Veronese diretor.

Muitas das peças de Veronese experimentam uma zona que põem em crise a própria noção de representação de tal forma que se pode identificar traços de um teatro quase performativo onde o jogo entre representação e apresentação, e entre ator e personagem constitui elemento chave da cena. Temos, então, a escrita de um autor-diretor, que põe em cheque a fala teatral e faz desse exercício um dos elementos fundamentais de sua poética. Para ele, um dos fantasmas centrais é a própria idéia de representação. Se os títeres representam um evidente elemento sinistro e assustador – que norteou o teatro do Periférico – nas peças do autor o ato da representação e a condição do duplo, experimentada pelos atores, estabelece um terreno de estranhamento que será campo para a experiência junto ao público. Fazer visíveis as regras do teatral, e tomar a teatralidade como tema, ainda quando o eixo temático das peças não explicite esse objetivo, é uma das características desse teatro que insiste em pensar o evento teatral como experiência compartilhada ao redor das faltas.

A peça (...) Mulheres Sonharam Cavalos tem como tema os distintos tipos de violência manifestos em um núcleo familiar. (...) Veronese põe um lupa sobre os vínculos  familiares e os observa a partir tanto da violência latente como daquelas formas de violência que explodem nas famílias em determinadas situações. As tensões familiares são levadas ao extremo, mas também pela condição física proposta: um edifício habitado, mas inconcluso, um espaço pequeno que limita o movimento dos sujeitos. Ali está esse núcleo familiar: três irmãos e suas esposas que se encontram tensionados em meio à promessa de um jantar familiar. Percebe-se que a cada um deles falta algo. Todos parecem explicitar a percepção de um falta e reagem buscando estratégias de relacionamento que possam suprir suas respectivas carências. Assim, todos caminham para o inevitável embate.

Mulheres foi escrita, como afirma o autor, pensando nos períodos mais duros da ditadura quando desapareceu tanta gente, mas não se deve ler o texto a partir desse momento histórico porque a situação pode ser transportada a outros contextos. Isso permite que o público possa reconhecer em aspectos desta família os que lhe são comuns, que pertencem ao nosso cotidiano e por isso mesmo são como visitas aos fantasmas.


Mulheres Sonharam Cavalos é um título que no deixa uma sensação de algo incompleto. Há ali um elemento inacabado. Algo a ser construído ou impossível de ser determinado.

Trechos selecionados do artigo de CARREIRA, André. “Daniel Veronese: um teatro da falta”. Revista OLHARES / Dramaturgia latino-americana.

Letícia Isnard