sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

CRÍTICA DE SERGIO MOTA

Potente, visceral e incômoda é a encenação de Ivan Sugahara, com assistência de direção de Gabriel Salabert, para o texto do argentino Daniel Veronese, "Mulheres sonharam cavalos", em cartaz no Teatro Poeirinha. Infiltrada de metáforas em torno de um encontro familiar (3 irmãos e suas esposas), a peça flagra uma assustadora violência cotidiana, banal e ordinária, inserida no seio dos personagens e... fruto das relações apodrecidas das instituições, em especial a família. Se a violência é linguagem - forma de se comunicar algo -, o texto de Veronese, ao reportar os atos de violência, principalmente o fracasso do núcleo em foco, surge como ação amplificadora desta linguagem primeira, aqui, uma forma de estética da crueldade. Obviamente, pela forma engenhosa e extremamente contemporânea como Sugahara conduz a ação e a direção precisa dos atores (direção "faca só lâmina", diria o poeta João Cabral), não há como deslocar o tema de seu centro na problemática sociopolítica, constitutiva da cultura nacional, como elemento fundador.

Sem protagonistas, os atores se envolvem e entendem os confrontos como ruídos, um ruído da realidade direta, marcado pela violência e pela arrogância que se imprimem em todos os atos humanos, inclusive na arte, com um poder de contaminação que atinge até mesmo os espíritos mais sensíveis. A família vai se anulando e se contaminando, sem que se saiba de onde partiu o vírus e o que está por trás dos jogos praticados entre eles. O que é genial na encenação e, ao mesmo tempo tenso e assustador para o espectador, que está literalmente dentro da cena por conta de um magnífico e eficiente projeto cenógrafico - uma arena de leões -, é o fato de que não há progressão, curvas dramáticas e clímax. Todos os atores, viris ao extremo e vivos em cena, (Ana Barroso, Elisa Pinheiro, Isaac Bernat, José Karini, Leticia Isnard e Saulo Rodrigues, sob a direção de produção de Tárik Puggina), já entram no palco "in medias res", no centro das coisas, com alta potência no apodrecimento das relações ali conflagradas.

Como é bom ver um trabalho de pesquisa sério e uma coerência acadêmica, para quem acompanha o trabalho de Ivan e Letícia, como eu, admirador de primeira hora! Seus processos são capítulos sérios e dedicados que beiram a pesquisa de campo e tornam ímpar essa parceria. Além da direção de atores muito bem orquestrada, impressiona também a cuidadosa e oportuna preparação de Paula Maracajá, que reforça a tensão que vai se estabelecendo na ruidosa cena, a partir da incorporação de movimentos equinos altamente embrutecedores, como os rinocerontes do emblemático texto de E. Ionesco. Engraçado é que os personagens já gigantes na forma ficam ainda maiores a partir dessa incorporação, como se não coubessem no exíguo espaço cenográfico e fossem ultrapassar a fronteira que os separa de uma quarta parede além arena. Os movimentos, quase uma sombria coreografia, emulam e preparam a surpreendente cena final, razão de todo o espetáculo.

Sergio Mota


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